Registros e percepções
TEXTOS
As Maravilhas e outras histórias de água, dunas e vento
Por Ana Flávia Baldisserotto*
Eles decidiram viajar. Viajar juntos. Voltar aos lugares onde parte da história familiar fora vivida décadas atrás. Certo dia, seu Air conta aos filhos já adultos a história da formação das Maravilhas, balneário localizado a poucos quilômetros da fronteira sul do país, onde os irmãos Almendares haviam passado os verões de sua infância e juventude nos anos 60 e 70. A escuta deste relato é o embrião do projeto, é ela que coloca o desejo em movimento. Como seria voltar àquela paisagem, olhar para aquele horizonte reto, vasto, e respirar aquele ar novamente? Como seria revisitar aquele cenário outrora tão familiar, hoje um ponto remoto, perdido entre dunas, mar e lagoas, no meio dos areais sem fim?
Partiram, então, a viajar. Viajar com o espírito de retorno, mas também de aventura. Partiram sabendo que em cada canto desta geografia meio esquecida, por vezes difícil, arredia, habitam ruínas quase invisíveis da nossa história. Partiram com olhos e ouvidos bem abertos e o espírito entregue às curvas e caprichos de um tempo mais lento. Um tempo regido pela voz e pelos silêncios de seus interlocutores, ensinado pelas ondulações da lagoa, pelo balançar das embarcações, pelas variações e ritmos do vento. Partiram com a entrega à duração de que se necessita para escutar o outro, e , acima de tudo, com a disposição para ser tocado por aquilo que não sabiam que estava lá, mas ainda assim, desejavam encontrar.
A exploração tem início justamente na Estação Balneária As Maravilhas, tema do primeiro vídeo e livro produzidos por Rosana e Renato. Por muito tempo isolada do restante do país por extensas planícies e intransponíveis alagados das terras do Taim, a cidade de Santa Vitória do Palmar é um dos centros gravitacionais do projeto. O lento processo de abertura das vias de acesso à cidade, por água e por terra, é narrado pelo professor Homero, que vai desvelar o jogo de forças que levou à construção e incipiente utilização do porto da cidade. Na sequência de viagens realizadas pela dupla, a Ilha dos Marinheiros será também um ponto de muitas idas e vindas. Admirada pela tranquilidade com que a vida ali caminha, e, especialmente, pela disposição do povo para conversar sem pressa, a ilha renderá belas histórias e encontros: seu Bolinha, seu Laurindo, dona Lucimar e tantos outros. Em São José do Norte, percebe-se logo, há um reservatório sem fim de relatos em espera. No episódio preparado para este projeto, somos apresentados a seu Octávio, que conta o caso curioso de um alemão espião que aportou de submarino na cidade à época da Segunda Grande Guerra. Já no episódio “A ilha de Feitoria e o povo que se apaixonou” somos convidados por seu Negrinho e seus amigos, a descobrir porque a ilha, que já teve mais de trezentos habitantes, conta hoje com um único morador.
As cinco narrativas em vídeo e os desenhos minuciosos que constituem os livros apresentados nesta exposição, buscam, em sua forma discreta e singela, apresentar-nos às paisagens humana e natural desta região através de fragmentos de memória que ainda pulsam, bem vivos, nos relatos de seus habitantes mais antigos. Nas trilhas destas viagens, nas margens da lagoa, na beira do mar, no pó da estrada, Renato e Rosana resgatam, ao final, não só algo de si, da memória familiar, mas também dimensões da história do Brasil que escapam a todos nós, bem como modos de subjetividade e formas de habitar o tempo, que parecem se encontrar em processo de decomposição e perda. São histórias como essas, “(…)da época em que nem todas as casas tinham rádio pra ouvir o noticiário(…)” – palavras de seu Octávio – que merecem e precisam ser contadas e escutadas. Histórias e lugares que nos restauram um sentido urgente de humanidade e que nos são, aqui, oferecidas por narradores generosos e compartilhadas com delicadeza por Rosana e Renato Almendares. Pequenas maravilhas.
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